segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Uma Vida

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"Em 1818, num Estado do interior dos Estados Unidos, um garoto pobre de 8 anos recebeu um chute de cavalo na cabeça. Foi dado por morto. Passado algum tempo, porém, levantou-se.Pouco depois morreu sua mãe.

Desde criança pequena, era intenso. Resolvera ser grande homem. Mas, quando, ainda jovem, a idéia de que o caminho da intensidade à grandeza passa pelo sacrifício primeiro lhe veio ao pensamento e lhe começou a invadir os sonhos, ele resistiu. Só se renderia a ela anos depois. Seria sempre triste e engraçado, usando o senso do absurdo para combater a experiência do sofrimento.

Em 1832, após vários biscates, tentou a eleição para deputado estadual. Derrotado, abriu loja que faliu no ano seguinte. Seria, até 1860, sua única experiência administrativa. Passaria anos pagando as dívidas do sócio.


Em 1834 elegeu-se deputado estadual enquanto continuava sua tentativa de fazer-se advogado autodidata. No ano seguinte, porém, a morte de sua noiva destruiu sua expectativa de ser feliz. Caiu em longo período de depressão e desnorteamento. Seu eventual casamento, a que se sentiu preso por obrigação de honra, parece haver feito parte de processo enigmático: a desesperança do amor converteu-se na esperança de salvar-se pela dedicação a uma grande tarefa.

Em 1838 foi derrotado na eleição para presidente da Assembléia Legislativa de seu Estado. Passou a ganhar a vida como advogado. E enfurnou-se no estudo da Bíblia, de Plutarco e dos poetas românticos, procurando incitamentos à grandeza que não mentissem sobre quem somos e o que queremos. Seus contemporâneos começaram a notar-lhe o traço mais marcante: força de vontade inquebrantável e inexplicável. Duvidavam, contudo, que um homem que não podia ver um bicho sofrer sem ficar transtornado pudesse triunfar no mundo bruto do poder.

Em 1843 não conseguiu legenda para candidatar-se ao Congresso. Elegeu-se em 1846 deputado federal. Entretanto, seu trabalho contra a intervenção americana no México deixou-o isolado. Não tentou reeleger-se na eleição subseqüente. Em 1849 teve rejeitado seu pedido de cargo federal de terceiro escalão.

Viajou nos anos seguintes pelo país tentando levantar discussão nacional sobre como reformar a democracia americana e evitar a guerra civil. Sua voz começou a ser ouvida. Sofreu, porém, derrotas repetidas como candidato ao Senado em 1854, como pré-candidato à vice-presidência em 1856 e novamente, como candidato ao Senado em 1858.

Na opinião geral, sua vida pública, série quase ininterrupta de reveses e rejeições, chegou, em 1858, ao fim. Consolidou-se entre seus amigos a impressão de que sua combinação misteriosa de doçura, clareza e teimosia o incapacitava para a ação prática.

Em 1860 Abraham Lincoln foi eleito presidente dos Estados Unidos. Conduziu até a vitória e a emancipação dos escravos a guerra civil americana, inferno de sangue e lágrimas, tentando reconciliar a justiça com a misericórdia e a prudência com a humanidade. Refundou, com isso, a República, mas não sem antes haver visto o incompreensível e vivido o intolerável. Em 1865 foi assassinado.

Diz o poema de Rilke: “Se fores o sonhador, sou teu sonho. Mas se quiseres acordar, sou tua vontade”. Seria, a partir da virada de 1860, a relação de Lincoln, vivo e morto, com seu país."


Texto de:
Roberto Mangabeira Unger
Do livro: A Segunda Via – Presente e Futuro do Brasil - 1ª edição
Editora: Boitempo Editorial

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